SETOR F
Desde que me entendo por gente e mesmo não
sendo um grande conhecedor em economia, minha experiência como camelô vem
me mostrando que o modelo empresarial no Brasil tem sido o responsável direto
por muitos dos problemas sociais que vivemos. Chegar a essa conclusão não é
difícil. Imagino que todos os líderes sociais, intelectuais, políticos,
religiosos, empresariais, assim como os "buchas" de todos
os setores também concordam com isso. O ponto central dessa questão é:
quais as sugestões e alternativas temos para apresentar? Percebo que, ao longo
dos anos, a Economia Social vem ganhando bastante expressão. Seus objetivos
passam necessariamente pela solidariedade e pelo desenvolvimento integrado da
comunidade. Ela tem contribuído muito com o Estado em suas ações e
infelizmente até o substitui, em alguns casos
extremos. Mas é claro que esse não é o seu papel. Acredito que a função
principal seja a de construir alternativas e até , no limite, ser um
prolongamento do Estado na implementação de suas políticas sociais. Em síntese,
a Economia Social é o que transforma os valores e até os costumes de um
ambiente e muda a vida das pessoas em um país capitalista.
Pensando nisso, quero propor um novo
debate para esse momento, um novo pensamento na direção da economia da
Favela , que estou batizando de SETOR F. O assunto merece atenção no que diz
respeito ao fenômeno de renda dos moradores desse setor. O PIB de muitos
países, o da Bolívia, por exemplo, é menor que o volume do movimento da
economia das comunidades brasileiras. É importante perceber que não estou
falando das periferias, e sim das favelas , que existem inclusive nas
periferias. Caso contrário esse número seria muito maior e estaríamos
falando em quase 70% da população. É hora de todos atentarem para
esse velho SETOR F, sejam do asfalto ou das favelas. Esse exercício serve,
inclusive, como um dos caminhos para demover o preconceito. Até aqui, os
argumentos que muitos usavam para não se aproximarem das favelas foram a
geografia complexa dos terrenos, que dificulta o acesso e demanda supostos
grandes investimentos, ou o receio do poder paralelo. O fato é:
precisamos promover o encontro dos empreendedores desses dois
mundos! Precisamos definitivamente assumir o desafio que é a geração de um
valor compartilhado em que podemos revolucionar a administração, gestão e o planejamento
dessa economia considerada ainda por muitos como paralela, por ser parte
de um ambiente que tem uma cultura própria e seus próprios códigos de
existência e desenvolvimento. Esse território que pulsa economicamente e que
exige investimentos e legalidade plena. Esse mundo que quer ser incluído em
todos os seus aspectos, e assim transpor todas as fronteiras que ainda existem.
Para mostrar que é perfeitamente
possível, acabamos de criar a Favela Participações S/A ( Favela Holding ), um
grupo integrado por 20 empresas que têm o foco de atuação nas favelas
brasileiras, trata-se se uma sociedade entre a Favela Holding e grandes
empresas dos mais diversos setores. Essa sociedade dará vida a empresas de
eventos, agência de viagens, publicidade ,MMA, shoppings, fábricas de
móveis, editora, instituto de pesquisa, distribuidora, expansão de negócios e
mídia, só para citar algumas. A idéia central é que o empreendedor tenha
a real percepção do retorno financeiro que essas comunidades irão trazer para o
seu investimento. Em contrapartida, quero que o morador da favela tenha
oportunidade de ser visto pelos empresários como protagonista desse processo de
construção compartilhada. Ou seja, como sócios de fato. Isso será feito pela
primeira vez nessa relação comercial. Para que esses
moradores possam executar esse papel de protagonismo, deverão se preparar para
co-gerenciar seus negócios, para gerar lucros e para manter esse lucro dentro
da própria favela, objetivando uma melhor qualidade de vida do lugar. Alguns
parceiros já começaram a colaborar com esse processo de formação, como Fundação
Dom Cabral e Sebrae-Rio).
Acredito que a grande revolução brasileira
será o avanço da economia nas favelas, uma sociedade de 12 milhões de pessoas.
Do contrário, alardearemos que somos a sexta economia mundial, comemoraremos em
breve que alcançamos a terceira, mas se as favelas não se desenvolverem, só
aumentaremos a distância entre o Brasil que cresceu e o outro Brasil que
sucumbiu. Mas para que as favelas se desenvolvam plenamente , é
preciso que os governos as vejam como um lugar de oportunidades, nunca de
carências.
Criando incentivos para que
empresários e os recursos privados se aproximem desses ambientes, resolvendo
inclusive um dos grandes problemas existente no país que é de INFRA ESTRUTURA.
Mesmo em projetos como PAC ou MINHA CASA MINHA VIDA que deveriam pensar em
equipamentos comerciais capazes de gerar emprego e renda para a população
local. Através de regras que garantam uma gestão feita por profissionais e
presença obrigatória de 60% de comerciantes do lugar. Nesse caso
parte das soluções passa por diminuir a taxa de juros do financiamento dessas
operações para os empresários que desejam investir nesses ambientes,
podendo inclusive criar uma espécie de “zona franca”. Do contrario vamos
continuar com as injustiças tratando dos espaços historicamente desiguais como
se eles fossem iguais.
Exatamente por isso, resolvi investir em
uma nova lógica de trabalho. O objetivo não é fazer nenhuma reparação ao
trabalho que fiz com a CUFA até aqui, pois se tivesse que fazer novamente, eu
faria exatamente a mesma coisa. Deixamos a CUFA como a instituição de maior
capilaridade do país e uma das mais respeitadas que conheço. Mas, por outro
lado, é preciso refletir o quanto é importante as organizações não virarem
apenas um balcão de projetos. As ações não podem existir somente para
fortalecer o ego das organizações e de seus líderes. Penso que um
movimento social deve ser pautado pelo desenvolvimento dos coletivos, sejam
eles parte ou não dessas organizações, sobretudo quando os recursos são
públicos. Isso não é nem de longe uma crítica ao que foi possível fazer
até aqui, afinal, nem sempre escolhemos as formas. Muitas das vezes, nos
limitamos a seguir o fluxo.
A
decisão de deixar a gestão da CUFA, apesar de me engajar em um projeto
comercial que tem a mesma direção, pode não ser visto de forma natural por
algumas pessoas. Novidades, sejam elas em que âmbito forem, sempre geram
espantos. Mas enquanto eu viver, serei um inquieto que tentará se
divertir surfando no olho do furacão. Precisamos seguir novos rumos,
trilhar na direção do que acreditamos. E claro, continuar pagando o preço por
sermos vanguarda em muitas ações. Lembro, por exemplo, de quando fizemos o primeiro
grande show em uma favela no Rio, talvez no Brasil. Foi na Cidade de Deus, no
ano de 2000, mais precisamente em uma noite de Natal. Produzimos um mega show,
com direito a muitas lágrimas dos artistas e do público. Um encontro memorável
entre a Cidade de Deus e Caetano Veloso, Djavan, Dudu Nobre e Cidade Negra. A
mídia fez desse histórico acontecimento um caso de polícia. Mesmo assim, o fato
possibilitou a leitura da sociedade e do poder público de que a favela também
era um lugar onde os grandes eventos culturais poderiam e deveriam ser
realizados. Até hoje fazemos grandes eventos em favelas, com parceria de muitos
que nos criticaram na época. O importante disso tudo é constatar que hoje,
outros tantos parceiros fazem esse tipo de ação e com sucesso. Outro caso
emblemático foi quando fizemos o filme e o livro ‘ Falcão. Meninos do
Tráfico’. Lembro que, apesar de ter recebido prêmios em mais de 20 países, de
ter recebido as homenagens mais importantes do país, o Bill e eu também fomos
processados e acusados de fazer apologia ao crime e associação ao tráfico.
Resistimos à tudo e seguimos em frente. Felizmente, hoje essa resistência é
reconhecida como um marco que possibilita muitas organizações e pessoas a se
comunicarem com as favelas das mais variadas formas e até mesmo com o tráfico,
com o objetivo de mediação de conflitos. Foi assim em 2001, quando fizemos o
primeiro projeto de formação de agentes da lei. A CUFA, em parceria com o
Ministério da Justiça, qualificou guardas municipais para melhor se relacionarem
com os jovens das favelas. Eu poderia citar muitos outros momentos em que
fomos considerados vanguarda na relação com comunidades, mas isso já passou e o
futuro é o que nos desafia.
Em nome desse desafio, lancei mão dessas relações para criar essa que é a primeira Holding de favela do Mundo. A Favela Participações S/A.
Em nome desse desafio, lancei mão dessas relações para criar essa que é a primeira Holding de favela do Mundo. A Favela Participações S/A.
Quero trazer à tona a discussão sobre a
economia da favela, o Setor F. Uma discussão sobre o que acredito ser a receita
ideal do bolo capitalista, com muitos ingredientes dessa nossa economia social
e compartilhada. Baseado no que construí, nas idéias que propaguei, em tudo o
que acredito, e vindo de onde vim, eu precisava criar mecanismos para que
o nosso desenvolvimento como conjunto fosse viável. E é aí que trago essa
reflexão para essa nova mentalidade.
É importante que esses grandes empresários pensem além
dos recursos disponíveis nas favelas. É preciso pensar no desenvolvimento de
seus moradores, tanto para promover a empregabilidade em massa quanto o
empreendedorismo. Para que os habitantes das favelas
alcancem esse objetivo, antes de tudo, é preciso que os empresários
percebam que uma sociedade entre eles seria mais do que um modelo que
revolucionaria a economia das favelas. Deveriam considerar que seria o único
modelo sustentável e que jamais foi testado coletivamente.
Para
destacar os efeitos do Setor F, vou lembrar um pouco dos outros três setores
que são: o primeiro setor, o privado capitalista, com fins
lucrativos; o segundo, o setor público, que visa satisfazer o interesse geral
da população. E o chamado terceiro setor, que é parte integrante da
Economia Social e está ligada à economia solidária. Na esfera
dessa Economia, estão o associativismo, o cooperativismo e o mutualismo como
formas de organização da atividade produtiva. Mas é importante pontuar algumas
semelhanças e diferenças entre esse novo Setor F e o terceiro setor, que é uma
categoria que traduz certas práticas que podem ser aplicadas em qualquer lugar.
O Setor F não. Esse é bem específico: focaliza territórios chamados
favelas (chamados pelo IBGE de aglomerados sub normais). O terceiro setor
combina geração de lucro com benefícios sociais. O Setor F faz dessa
combinação um projeto de afirmação política e cultural de comunidades. Acredito
que as favelas se tornarão mais poderosas, em todos os
sentidos, e mais capazes de pensar criticamente sobre si mesmas e sobre o país,
na medida em que passarem pela experiência educativa, de aprendizado e
desenvolvimento, e de tornarem-se protagonistas de um processo de interesse
pessoal e coletivo. Visto por esse prisma, o Setor F se torna
qualitativamente diferente do terceiro, porque o todo é maior do que a soma das
partes. Por isso, o Setor F não é apenas a soma do terceiro setor mais cultura
e política. Ele converte-se em outro tipo de experiência coletiva. Isso
impacta a própria dimensão econômica do que se chama Setor F, porque se é
preciso pensar o significado político e cultural de cada empreendimento, a
avaliação não pode ser apenas econômica e social, como seria naturalmente no
terceiro setor, do qual eu faço parte há quase 20 anos.
Daí
a idéia de um shopping. Um shopping é um grande símbolo capitalista que pode
ser apropriado e ressignificado, mantendo vários de seus aspectos clássicos
como: lojas de marca, escadas rolantes, ar condicionado, praças de alimentação
e um astral imponente. Nesse novo modelo, esse mesmo shopping pode
construir novos aspectos também, como a presença das lojas locais que vão
derramar produtos fabricados na própria favela, a exposição das mais diversas
artes consumidas na comunidade ou ainda a relação entre seus próprios pares, na
medida em que o ponto chave estará na relação entre os vendedores e clientes da
própria favela, eliminando os históricos preconceitos. Outro ponto é a relação
entre fraqueado e franqueadores, já que as marcas só garantem espaços no Favela
Shopping se for via Franquia Social, ou seja, o franqueador investe em um
empreendedor da favela, por ele identificado. Se por um lado haverá um
investimento social ao ofertar a franquia, por outro haverá um ganho por muitos
anos nesse mesmo espaço inovador. Para que esse modelo - de Franquia
Social - seja aplicado, será preciso um processo de formação, qualificação e
acompanhamento da gestão pelos que têm experiências em seus respectivos ramos
de atuação. Mais do que isso: 100% dos funcionários do empreendimento deverão
ser moradores da favela. Isso vai melhorar a qualidade de vida da população já
que, além desses trabalhadores estarem menos tempo em trânsito, portanto mais
tempo com seus familiares, o projeto vai gerar renda local e fazer com que
esses valores permaneçam ali. Mas não paro por aqui. Como se não fosse
bastante esse impacto positivo na economia da favela, um outro aspecto, no caso
dos shoppings, é a obrigatoriedade da criação de um projeto visual para todo o
comercio no entorno do empreendimento, além de oferecer cursos de
negócios para todos os comerciantes locais, visando o desenvolvimento dos
interessados. Até mesmo o Estado tem a chance de pensar incentivos para estimular a o
crescimento de
empreendedores nessas comunidades.
Estou
convicto de que estamos iniciando um processo
empreendedor jamais visto! O tempo nos mostrou que nenhum desses setores
foi capaz de resolver, ou mesmo entender, as mais diversas dimensões da
economia das favelas. O grande ensinamento que fica e a grande reflexão que
todos devemos fazer é: ou dividimos todas as riquezas que todos
nós geramos, ou infelizmente seremos obrigados a continuar convivendo com
as consequências da miséria que os concentradores de renda têm gerado ao longo
da história. E todos temos a chance de mudá-la. A hora é agora!
Celso
athayde
Diretor
executivo da Favela Participações S/A -